12 de dez. de 2007

Felizes são os infelizes

[...]Jesus pregou o famoso sermão numa ocasião em que sua popularidade estava no auge. Multidões o seguiam por onde quer que fosse, obcecadas com uma pergunta: O Messias chegou finalmente? Nesta ocasião fora do comum, Jesus deixou de lado as parábolas e garantiu ao auditório um sopro cheio de “filosofia de vida”, assim como um candidato revelando uma nova plataforma política. E que plataforma.[...]

Nas bem-aventuranças, Jesus honrou pessoas que não podem desfrutar de muitos privilégios nesta vida. Para os pobres, os que choram, os mansos, os famintos, os perseguidos, os puros de coração, oferecia a certeza de que o seu trabalho não deixaria de ser reconhecido. Receberiam ampla recompensa. “Na realidade”, escreveu C. S. Lewis, “se considerarmos as promessas pouco modestas de galardão e a espantosa natureza das recompensas prometidas nos evangelhos, diríamos que o nosso Senhor considera nossos desejos não demasiadamente grandes, mas demasiadamente pequenos. Somos criaturas divididas, correndo atrás de álcool, sexo e ambições, desprezando a alegria infinita que se nos oferece, como uma criança ignorante que prefere continuar fazendo seus bolinhos de areia numa favela, porque não consegue imaginar o que significa um convite para passar as férias na praia”.

Sei que para muitos cristãos uma ênfase das recompensas futuras saiu de moda. Meu antigo pastor Bill Leslie costumava observar: “Conforme as igrejas vão ficando mais ricas e têm mais sucesso, sua preferência por hinos muda de ‘Aqui não é meu lar, um viajante sou’ para ‘Este é o mundo do meu Pai”. Nos Estados Unidos, pelo menos, os cristãos têm tanto conforto que já não nos identificamos com as condições humildes a que Jesus se referiu nas bem-aventuranças — o que pode explicar por que elas parecem tão estranhas aos nossos ouvidos.

Mas, como CS. Lewis nos faz lembrar, não nos atrevemos a menosprezar o valor das futuras recompensas. Só precisamos ouvir os hinos compostos pelos escravos americanos para perceber esse consolo da fé. “Balança-te lentamente, doce carruagem, que vem vindo a fim de me levar para o lar.” “Quando eu chegar no céu, vou vestir meu manto, vou gritar pelo céu de Deus.” “Logo estaremos livres, logo estaremos livres, quando o Senhor nos chamar para o céu.” Se os senhores dos escravos tivessem escrito esses hinos para os escravos cantar, seriam uma obcenidade; mas não, brotaram da boca dos próprios escravos, gente que tinha poucas esperanças neste mundo, mas esperança permanente em um mundo por vir. Para eles, toda esperança se centralizava em Jesus. “Ninguém conhece o meu labutar, ninguém, somente Cristo.” “Vou deitar todos os meus problemas nos ombros de Jesus.”[...]

Com o tempo aprendi a respeitar e até a esperar as recompensas que Jesus prometeu. Mesmo assim, essas recompensas se encontram em algum lugar no futuro, e as promessas pendentes não satisfazem as necessidades imediatas. Ao longo do caminho, cheguei a crer que as bem-aventuranças referem-se ao presente também, além do futuro. Precisamente contrapõem o sucesso no reino do céu ao reino deste mundo.

J. B. Phillips traduziu as bem-aventuranças que se aplicam ao reino deste mundo:

Felizes os “intrometidos”: pois subirão a postos elevados no mundo.

Felizes os que têm pavio curto: pois nunca permitirão que a vida os machuque.

Felizes os que se queixam: pois conseguem fazer o que querem no final.

Felizes os blasés: pois nunca se preocupam com os seus pecados.

Felizes os escravizadores: pois obterão resultados.

Felizes os homens notáveis deste mundo: pois se aproveitam das circunstâncias.

Felizes os perturbadores: pois são notados pelos outros.1

A sociedade moderna vive por regras de sobrevivência dos mais capacitados. “Aquele que morre com mais brinquedos é o vencedor”, diz a frase de um pára-choque. Da mesma forma a nação com as melhores armas e com o maior PIB. O proprietário dos Chicago Bulls apresentou um resumo compacto das regras que governam o mundo visível na ocasião da aposentadoria (temporária) de Michael Jordan. “Ele está vivendo o sonho americano”, disse Jerry Reinsdorf. “O sonho americano é atingir um momento na vida em que não é preciso fazer nada que você não queira e em que pode fazer tudo o que quer.”

Esse pode ser o sonho americano, mas sem dúvida não é o sonho de Jesus conforme revelado nas bem-aventuranças. As bem-aventuranças expressam com bastante clareza que Deus avalia este mundo por um conjunto de lentes. Deus parece preferir os pobres e os que choram, à Loteria Federal e aos supermodelos que se divertem na praia. É estranho, Deus pode preferir a América Latina do Centro e do Sul à praia de Malibu, e Ruanda a Monte Carlo. Na verdade, poder-se-ia colocar um subtítulo no sermão do monte, não a “sobrevivência dos mais aptos”, mas o “triunfo das vítimas”.[...]

“Bem-aventurados os pobres de espírito”, disse Jesus. Um comentário traduz para “Bem-aventurados os desesperados”. Não tendo a quem buscar, os desesperados se voltam para Jesus, o único que pode oferecer a libertação por que anseiam. Jesus realmente cria que uma pessoa pobre de espírito, ou chorosa, ou perseguida, ou faminta e sedenta da justiça tem uma “vantagem” especial sobre o restante de nós. Talvez, apenas talvez, a pessoa desesperada clame a Deus pedindo ajuda. Nesse caso, essa pessoa é verdadeiramente bem-aventurada.

Os estudiosos católicos cunharam a expressão “a opção de Deus pelos pobres”, em referência a um fenômeno que encontraram no Antigo e no Novo Testamento: a parcialidade de Deus para com os pobres e os prejudicados. Por que Deus destacaria os pobres para atenção especial em detrimento de qualquer outro grupo?, eu ficava imaginando. O que “faz os pobres merecerem a preocupação de Deus? Recebi ajuda nessa pergunta de uma escritora chamada Monika Hellwig, que faz uma lista das seguintes “vantagens” de ser pobre:

Os pobres reconhecem não apenas sua dependência de Deus e de gente poderosa como também sua interdepen­dência uns dos outros.

Os pobres depositam a segurança não nas coisas, mas nas pessoas.

Os pobres não têm um senso exagerado de sua própria importância e nenhuma necessidade exagerada de privaci­dade.

Os pobres esperam pouco da competição e muito da coope­ração.

Os pobres conseguem distinguir entre necessidade e luxo.

Os pobres podem esperar, porque adquiriram uma espécie de paciência obstinada nascida de uma dependência reconhecida.

Os temores dos pobres são mais realistas e menos exage­rados, porque já sabem que a pessoa pode sobreviver a grandes sofrimentos e necessidades.

Quando os pobres ouvem a pregação do evangelho, ele soa como boas novas e não como uma ameaça ou repre­ensão.

Os pobres podem reagir ao apelo do evangelho com certo abandono e com uma inteireza descomplicada porque têm tão pouco a perder e estão prontos para tudo.

Em suma, não por escolha própria — podem intensamente desejar o contrário —, as pessoas pobres encontram-se em uma postura que se encaixa na graça de Deus. Em sua condição de necessidade, de dependência e de insatisfação com a vida, podem dar boas vindas ao livre dom do amor de Deus.

Como exercício voltei à lista de Monika Hellwig, substituindo a palavra “pobres” pela palavra “ricos”, e alterando cada frase para o seu inverso. “Os ricos não sabem que precisam prementemente de redenção... Os ricos não depositam a confiança nas pessoas, mas nas coisas...” (Jesus fez uma coisa parecida na versão de Lucas das bem-aventuranças, mas essa parte recebe muito menos atenção: “Mas ai de vós, os ricos! Pois já tendes a vossa consolação...”.)

A seguir, tentei uma coisa ainda mais ameaçadora: substituí “ricos” pela palavra “eu”. Revendo cada uma das dez declarações, perguntei-me se minhas próprias atitudes se pareciam mais com as dos pobres ou com as dos ricos. Reconheço facilmente minhas necessidades? Rapidamente dependo de Deus e das outras pessoas? Onde fica a minha segurança? Estou mais pronto a competir ou a cooperar? Posso distinguir entre necessidades e luxos? Sou paciente?

As bem-aventuranças me parecem boas novas ou uma espécie de repreensão?

Quando fiz esse exercício comecei a perceber por que tantos santos voluntariamente se submetem à disciplina da pobreza. A dependência, a humildade, a simplicidade, a cooperação e um senso de abandono são qualidades grandemente prezadas na vida espiritual, mas extremamente fugidias para as pessoas que vivem no conforto. Podem existir outros caminhos para Deus mas — ah! — são difíceis, tão difíceis como um camelo se espremendo pelo buraco de uma agulha. Na grande inversão do reino de Deus, os santos prósperos são muito raros.

Não creio que os pobres sejam mais virtuosos do que qualquer outra pessoa (embora tenha descoberto que são mais compassivos e com freqüência mais generosos), mas são menos inclinados a fingir que são virtuosos. Não têm a arrogância da classe média, que pode habilmente disfarçar seus problemas sob uma fachada de justiça própria. São mutuamente mais dependentes, porque não têm escolha; precisam depender dos outros simplesmente para sobreviver.

Agora vejo as bem-aventuranças não como divisa protetora, mas como profundas perspectivas dentro do mistério da existência humana. O reino de Deus vira a mesa. Os pobres, os famintos, os que choram e os oprimidos de fato serão bem-aventurados. Não, naturalmente, por causa de seu estado de infortúnio — Jesus passou grande parte da vida tentando remediar esses infortúnios. Antes, são bem-aventurados por causa de uma vantagem inata que têm sobre os mais privilegiados e auto-suficientes. As pessoas ricas, com sucesso e belas podem muito bem passar pela vida descan­sando em seus dotes naturais. As pessoas que têm falta de tais privilégios naturais, uma vez desqualificadas para o sucesso no reino deste mundo, têm simplesmente de se voltar para Deus no momento da necessidade.

Os seres humanos não admitem prontamente o desespero. Quando o fazem, o reino do céu se aproxima.[...]

Trecho do livro O Jesus que eu nunca conheci, Philip Yancey.

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