23 de out. de 2008

Diante do Mestre


“Sermão vitória financeira”, repete o pastor em voz alta aquilo que os dedos digitam no teclado, no campo de texto usado para buscas no Google. Quase trinta mil resultados, a maioria sem relevância. Consegue pescar um ou outro sermão sobre o tema. Muda as palavras chaves para “vitória financeira cristo” e “vitória financeira bíblia” para conseguir mais material. Encontra inclusive uma Bíblia de estudo sobre o assunto, que ele logo compra usando o cartão de crédito, já que pretende abordar bastante sobre esta matéria nos próximos tempos. Talvez um gasto inútil, já que o Google está sendo uma ferramenta muito útil para ele em todas as suas preleções semanais.

Com meia dúzia de exemplos à frente, o pastor monta o seu sermão usando as mesmas palavras-chave e idéias básicas encontradas nas pregações pesquisadas, bastante parecidas entre si. O núcleo da argumentação consiste em trabalhar bastante, pedir (ou determinar) vitória a Deus e contribuir generosamente com a igreja. Ele faz um esboço, treina alguns bordões, decora alguns parágrafos significativos e pensa em desafios e reflexões de momento a serem lançadas. Imprime seu esboço, e treina algumas expressões e gestos diante do espelho.

O momento no espelho é sempre o ponto alto da preparação de seus sermões. Ele demora muitos minutos diante de si. Admira seu olhar penetrante, sua expressão severa de juiz, e também a transição para um rosto paternalmente sorridente, tão importante em um pastor. Gosta de ver seus próprios lábios fazerem bico enquanto suas sobrancelhas dão um tom de seriedade ao seu rosto, em uma de suas marcas registradas. Delicia-se ao contemplar sua boca torta, centro da face de desdém que faz quando dá de ombros após colocar o ouvinte em uma enrascada argumentativa sarcástica. Chora de verdade ao ver seus olhos forçarem a tristeza após palavras sombrias. Encanta a si próprio como que para ter certeza que encantará seus ouvintes. Diante do espelho ele tem suas experiências religiosas. Ao ver na imagem refletida um sorriso felicitador, parabenizando-o por suas excelentes e criativas expressões, o pastor vê a aprovação de seu deus.

Ao tomar banho o pastor lembra que esqueceu-se do texto bíblico para iniciar a mensagem. Não conseguiu lembrar-se de nenhum, o que o levou a voltar aos estudos que tinha pesquisado na Internet. Conseguiu achar Deuteronômio 28:11 como uma boa referência, mas preferiu o versículo seguinte, que parecia mais impactante: “o Senhor te abrirá o seu bom tesouro, o céu, para dar à tua terra a chuva no seu tempo, e para abençoar todas as obras das tuas mãos; e emprestarás a muitas nações, porém tu não tomarás emprestado”.

Tudo está pronto. Coloca o esboço na página de sua Bíblia em que se encontra o texto e vai para o culto de domingo à noite. No caminho, muito rapidamente, lembra-se de passagem do motivo para falar sobre dinheiro a sua platéia naquele dia. Ele tem planos ousados para sua comunidade, e para pô-los em prática precisa de gente com recursos à sua volta. Não há muitos com posses ou dinheiro no rol de membros, então ele precisa incentivar seus liderados. Já tinha indicado cursos de empreendendorismo a alguns membros de sua igreja, mas achava que precisava tornar o assunto espiritual para ser levado mais a sério e para validar seus planos.

Mais rapidamente do que a idéia chegou em sua mente, ele a afasta. Precisa estar centrado em sua mensagem, em sua verdade e em seus desafios a serem propostos. Motivos anteriores ou pensamentos demais em sua mente atrapalhariam as expressões tão treinadas ao espelho. Não há espaço para deslizes se ele quiser levar seus projetos até o fim. Ninguém pode impedí-lo se ele seguir o caminho que tinha idealizado, pensa.

Chega ao templo certo de uma grande noite. Participa intensamente das músicas ministradas, fechando os olhos, levantando as mãos, chorando e bradando. Não que goste das músicas, mas sabe que se participar daquilo que o ministro de louvor faz, este será recíproco. O pastor quer atingir o maior número possível de gente, principalmente aqueles que são líderes.

Enfim a palavra é dada a ele. Quando se levanta é abordado por uma jovem.

- Pastor, ensaiamos um teatro para depois da mensagem.

O pastor dá duas batidinhas no ombro da jovem, e abre seu sorriso paternal característico. Ao virar as costas já não sabe o que ela acaba de dizer. Não importa o que ela disse, o importante é que ela precisa dar satisfações. O sorriso não é por que há interesse da juventude em se incrementar a noite de domingo com um teatro, mas porque ele precisa ser informado disso. Tanto bastava ser o centro dos assuntos de importância que o conteúdo do informe era desprezível.

Assume o púlpito e constrange sua platéia com comentários que desafiam a apatia das respostas à sua saudação, que na verdade não foram tão apáticas. Pede após alguns avisos que todos abram suas Bíblias no texto que tinha escolhido. Coloca o esboço ao lado e lê o texto. Pela primeira vez naquele dia ele ora, com palavras intensas e fervorosas, em uma emoção crescente. Abre os olhos, e vê que alguns já choram antes mesmo que ele inicie o sermão em si. Então, com uma de suas caras moldadas no espelho, começa.

- Meus amados irmãos, Deus me deu uma mensagem essa noite. Eu não ia falar disso, mas o Espírito é quem fala, ele é quem determina, e eu obedeço.

Várias expressões de júbilo são ouvidas após a estratégica pausa no discurso. O pastor sabe o papel que sua expressão teve nisso.

- Esta noite eu quero falar com vocês sobre um assunto muito importante. Quero falar com você que está sem emprego, com você que quer uma promoção, com você que quer que sua empresa vá pra frente. Quero falar com você que quer vencer na vida. A partir de hoje, meu amado, Deus abrirá as portas, Deus moverá os céus, Deus moverá a terra, Deus moverá seu emprego, Deus moverá sua empresa, Deus moverá sua carreira, Deus moverá seus tesouros, Deus moverá você até a sua vitória!

O tom da voz cresce a cada “Deus moverá”, e o júbilo é ainda maior nesta pausa.

- A partir de hoje, meu irmão, você saberá o que tem que fazer pra contribuir com a igreja, pagar suas contas, comprar aquilo que deseja e ainda sobrar dinheiro pra Deus realizar seus sonhos. Diga para o irmão que está do seu lado: “Deus fará você prosperar”.

A platéia repete conforme pedido, e sente prazer em fazer isto. A pregação continua neste nível por mais de uma hora. Ele alterna entre frases como “Deus não gosta de vagabundos”, usando a expressão de juiz severo, quando quer estimular o trabalho, ou “Deus ama vocês e quer ver vocês prosperarem”, usando a expressão de pai carinhoso, querendo encorajar os ouvintes. O discurso emocionalmente multiforme deixa as pessoas ainda mais envolvidas em suas palavras.

Uma hora e meia depois de iniciar o pastor está no ápice de sua exaltação. Dois terços dos presentes está mentalmente em suas mãos, e o outro terço já planeja deixar o recinto. É nesse momento que ele lança seu último recurso daquela noite. Convoca a todos os que “são corajosos e querem mudar” a irem à frente dele, diante do púlpito para “receber de Deus o que Ele tinha naquela noite para dar”. Apesar do tom do convite, que chama de covarde quem não atende, as pessoas se amontoam à frente do pastor, entre a primeira fileira de bancos e a plataforma à frente do púlpito. O número é tão grande que alguns se espremem no corredor central entre os bancos. Alguns permanecem de pé, outros se ajoelham e vários choram.

O pastor lança alguns de seus bordões chamativos e emocionais, convoca alguns diáconos e divide entre eles a tarefa de orar pelos, segundo ele, “corajosos ousados com atitude diante do altar do Senhor”. A maioria está de olhos fechados, se derramando em emoção. O pastor contempla então cada rosto, cada expressão. Satisfeito, dá um sorriso e fala algumas coisas longe do microfone acompanhadas de um soco no ar. Alguns entendem que ele fala em línguas estranhas, mas na verdade ele está comemorando em Português, grato por ser ele mesmo, feliz por ser capaz daquilo, contente por tudo que realizou. Em cada rosto ele vê uma de suas caras. As pessoas como que o copiam, acreditando que a face que o pastor faz será uma súplica aceitável em si mesma diante de Deus, já que se trata das formas do rosto de alguém piedoso. E do mesmo modo que ele via aprovação em sua imagem refletida no espelho, novamente seu deus parecia estar diante dele, o congratulando em cada semblante em que ele via a si próprio.

O pastor passa então os olhos pela multidão à sua frente. Depois disto procura manifestações propícias de outras pessoas pelos bancos da igreja, buscando mais oportunidades para, como ele diria, “desafiar a coragem” dos presentes. De súbito, seus olhos se fixam na porta da igreja. Algo diferente chama a atenção dele. Na verdade, alguém diferente. Um homem está parado à porta com roupas peculiares. O homem em si é peculiar, na verdade: tem barba espessa e cabelos longos, castanhos, ondulados, ligeiramente despenteados. As roupas, que foram o que primariamente chamaram a atenção, consistem em um vestido branco bem longo, com mangas bastante compridas, envolto em uma túnica vermelha e preso por um cinturão pouco abaixo do peito. Calçava sandálias surradas.

Tentando entender, o pastor olha o homem de baixo a cima. Fixa então os olhos no olhar penetrante daquela imponente figura à porta. O homem tem um olhar sério, demonstrando certa desaprovação e uma leve irritação através de uma severa flexão das grossas sobrancelhas. Em um instante o pastor chega a uma conclusão que o leva a sentir um frio agudo percorrer seu corpo. Arrepia-se e abre bem os olhos. “É ele! Só pode ser ele”, pensa. Trêmulo, deixa o microfone cair, o que é percebido por poucos - alguns, de olhos fechados, apenas gritaram alguns “glórias” diante do ruído atípico.

O pastor volta-se para a parede atrás de si incomodado. Espera que ao se virar-se para a porta novamente o homem não esteja mais lá. Olha para trás hesitante, mas o homem ainda está ali o encarando. Os olhos do pastor começam a derramar lágrimas, e o seu rosto agora demonstra certo constrangimento - face que ele nunca treinou diante do espelho. Sente-se exposto, o que o leva a encolher-se. Cai de joelhos e chora amargamente. Desvairado, fala em uma voz muito baixa, que nem muito próximo se pode ouvir.

- Ele veio. Por que ele veio? Só para me mostrar meu erro? Mas eu encheria esta comunidade! Não é isso que ele quer? E ele ainda está lá na porta olhando pra mim! Já chega, eu já entendi, Deus! Pode ir embora! Eu não suporto!

Ninguém sabe o que se passa com ele. Alguns o vêem chorando e se emocionam mais ainda por acharem que se trata de alguma manifestação espiritual mais intensa. À porta, a jovem que no início informara o pastor que haveria um teatro após a pregação se aproxima do homem que tem vestes diferentes.

- É, acho que não vai ter o teatro.

O homem volta-se para a moça e não disfarça seu desdém ao pastor.

- É, ele empolgou mesmo. Isso aí não termina cedo de jeito nenhum. Aposto que ele tem idéias para mais duas horas.

- Fica pra semana que vem. Ele é o pastor, Deus deve ter algum propósito nisso.

- Quem sabe. O certo é que eu vou tirar essa fantasia ridícula. Tá quente demais.


fonte: Um bicho de Rondônia

3 comentários:

  1. to chegando ai daqui 1 horinha... Apartir das 20 horas já estaremos lá na minha mae
    Vai pra lá pra gente fazer alguma coisa, pois vou embora amanha cedinho
    priiiiiiiiiiiiiiiiiiiiimo

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  2. Levei um susto quando vi a montagem, parecia o interior de uma igreja que eu conheço. Quase reconheci algumas pessoas. Depois eu lembrei que a maioria das igrejas são parecidas por dentro, hehehe.

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  3. ô tiago, com certeza é uma igreja que
    eu conheço, mas não importa, o que eu quero e te passar um link pra voce ouvir umas musicas legais.
    se vc não conhece, procura e ouve:

    http://apenasmusica.blogspot.com/search/label/All%20Together%20Separate

    e não é propaganda, Dios te bendiga

    Jose Inacio

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